quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O caso extraordinário de Knut Hamsun

Alain de Benoist - Knut Hamsun é um mistério. Embora as suas obras tenham sido traduzidas para o francês, embora tenham sido alvo de várias adaptações ao cinema e à televisão, embora – ao contrário de muitos outros – os seus livros não sejam “nem datados nem obsoletos” (Hubert Nyssen), é ainda ignorado pelo público francês.

Laureado em 1920 com o Nobel da literatura, frequentemente comparado a Dickens, Ibsen ou Gorky, Hamsun não era, contudo, só o renovador da língua norueguesa nem o maior escritor norueguês do século XX – o que já seria muito. No prefácio à edição americana de Fome, Isaac Basgevis Singer (que traduziria Victoria para yiddish) escreve que “toda a literatura moderna deste século encontra aqui as suas raízes”.

Razão pela qual é admirado e saudado por escritores tão díspares quanto Thomas Mann, Henry Miller, Octave Mirbeau, André Gide, John Galsworthy, André Breton, H. G. Wells, Bertolt Brecht, Franz Kafka, Robert Musil, D. H. Lawrence ou Jean Paulhan.

Hamsun, é verdade, opunha-se ao mundo moderno. Uma das grandes constantes da sua obra é a sua real aversão à burguesia. Desde o início que o seu realismo lírico se dirigia contra a sociedade industrial, o capitalismo, o modernismo urbano e o reinado do dinheiro. Mas seria errado vê-lo como um novelista “populista” ou um simples e bucólico apologista da terra “que não mente”.

Certo, para ele a natureza é um recurso. Mas trata-se de uma natureza selvagem, tão selvagem quanto as bestas e os homens o podem ser. E o seu estilo narrativo, herdeiro da tradição oral, é um no qual a natureza, a paisagem, os objectos inanimados, longe de interpretarem um papel meramente decorativo, interagem com comportamentos, sentimentos e ideias. Vemo-lo claramente em Pan, gloriosa história de amor que exalta a intima união entre o coração e a natureza, tornando-os em duas manifestações da mesma realidade.

“Sou realista no sentido mais estreito do termo”, dizia Hamsun, “mostro a profundidade do coração humano”. De facto, queria retratar “a vida inconsciente de toda a alma”, razão pela qual desde o início retrata a vida interior com uma riqueza e uma complexidade extraordinárias. Indubitavelmente, esta abordagem não podia parecer mais estranha ao mundo actual, onde os seres só se movem por motivos exteriores. Inconformista, indiferente a honras, saía de casa nos seus aniversários para fugir à curiosidade pública. Devido ao seu gosto, atraíam-no as pequenas comunidades rurais, como as das ilhas Lofoten da sua infância. Razão pela qual Miller o descreveu como “marginal, vadio, rejeitado, um rebelde irredutível, inflexível opositor do sistema… um aristocrata do espírito.”

As suas personagens não se movem pela indignação ou pela interacção social, mas pela tensão interior, uma complexidade avassaladora devida à sua natureza de excepções. Não se tratam de homens comuns, contudo são também heróis. Longe de pertencerem a uma única casta, na extensão a que pertencem (sem o reconhecer) a uma modernidade que criou mais ansiedades que liberdades, são seres despedaçados, normalmente solitários, repletos de dissonâncias e contradições. A sua natureza é, à partida, honesta e orgulhosa, mas abeira-se do abismo e as dificuldades que encontram são por vezes intransponíveis.

O próprio Hamsun, com 15 anos, embarcou numa vida difícil e aventureira, “endurecida pelo azar” (Octave Mirbeau), cheia de sofrimento e privação, que o levou a uma América decepcionante, onde analisou em pleno o novo mundo que lhe fora prometido.

Podemos falar de uma “perspectiva obscura” na obra de Hamsun. Mas seria precipitado explicá-lo como uma espécie de pessimismo escandinavo, fruto dos perolados fiordes nórdicos e das noites agitadas do Verão boreal. Nos romances de Hamsun o amor e a sensualidade estão sempre presentes. Este adora tudo o que o rodeia, tudo lhe dá algum significado, tanto é assim que não exagerávamos em afirmar que o amor é o real centro da sua obra.


Mas este amor é inseparável da visão trágica, pois as suas personagens debatem-se sempre não só com as suas limitações, mas também contra mentiras e falsidades. Como em Victoria, onde os amantes são pervertidos por uma sociedade na qual a carícia destrói os seus corpos, ou em Benoni e Rosa, nos quais o amor é uma força cruel sob cujo poder os corações raramente se encontram de acordo.

Mais, o amor é inseparável do ódio, tal como a alegria e a vontade de viver não podem ser separadas da consciência humana de fim. Nele, os sentimentos antagonistas baseiam-se um no outro sem jamais solidificarem, como as idades da vida se seguem uma à outra ao ritmo das estações. A complementaridade dos opostos.

Nascido em 1859, faleceu em 1952. Germanófilo desde os tempos de Bismarck, assim se manteve toda a vida. Foi o suficiente, em 1945, com 86 anos, para ser votado a um destino comparável ao de Ezra Pound: condenado a pagar ao Estado uma multa que o reduziu à pobreza, foi internado num hospital psiquiátrico por ter sido um “colaboracionista”.

Até hoje, na Noruega nenhuma rua nem nenhum edifício público foram baptizados com o seu nome, onde nunca foi sequer alvo de um selo comemorativo.

Contudo, não era um político, mas um músico da palavra. “A linguagem”, dizia, “deve cobrir todos os tipos de música”, o escritor deveria sempre procurar uma “palavra que vibre”, um termo exacto “que lacere o coração ao ponto de me fazer soluçar, tamanha a sua precisão”. Razão pela qual não escrevia “facilmente”, pelo contrário, escrevia com dificuldade, com dor. Para ele, escrever era uma forma de estar vivo.

Publicado originalmente no semanário O Diabo
10 de Janeiro, 2012.

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